terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Hulot e o Moderno





"Meu Tio", de Jacques Tati, recentemente revisto, pode ser encarado a um tempo como uma obra de humor e de austeridade (um pouco como se Robert Bresson resolvesse fazer uma comédia, o que nunca deve ter passado por sua cabeça, já que seus filmes não trabalhavam com a comicidade das coisas).

Austeridade, em primeiro lugar, pelo tipo de filmagem que não se preocupa em fazer concessão para agradar seu público. Em segundo, pelo sentido rigoroso e detalhista da observação.

Mas, afinal, o que Tati observa a partir de seu cômico protagonista Monsieur Hulot? Um universo moderno- solidificado e metálico-, em que tudo obedecerá a uma prévia função de desempenho.

Para tanto, a filmagem aposta em planos abertos, que reforçam, de forma contraditória, a visão de um mundo rigorosamente fechado, tendo como base o lar burguês dos Arpel. Quanto mais distanciada a câmera de Tati, menos crível tal universo nos parece. Por intermédio da janela da casa, nos é dado ver um mundo rigidamente circunscrito, delimitado.

Do outro lado da cidade, há a moradia de Monsieur Hulot, onde, pelo contrário, os espaços, de alguma maneira, se comunicam. As janelas evocam a obra “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, em que as moradas em algum momento poderão se tocar. Por diversas vidraças e quadros, a câmera respira tanto nos espaços exteriores quanto nos interiores.

É como observadores interessados que acompanhamos, via janelas e ruas, os vai e vens de Houlot, sua presença a cruzar, quase imperceptivelmente, com a de um outro ou outra nos corredores, em versão menos veemente da formidável cenografia proposta por Jerry Lewis para o “O Terror das Mulheres”, obra-prima do humor.

Para a casa dos Arpel, Jacques Tati reserva uma visão mais cruel, com insignificantes ruídos no local a ganhar enormes proporções. O peixe, símile fajuto de um chafariz- versão privada- só libera sua água quando a visita é do interesse da família.

Já a maneira de a câmera adentrar o universo de Hulot se dá por meio de tijolos rachados na rua. Tais rachaduras presentes no quadro de uma imagem oferecem espaço para que o sobrinho do protagonista sinta-se mais livre, e até disposto a comer um sanduíche preparado por um homem nada ocupado com a excessiva higienização do alimento.

Tati, claro, tende sua simpatia para o mundo onde nada é deveras "clean" ou metalizado, ao contrário da cadência ritualística e estática ocorrida na casa dos Arpel. A mesma a compor um quadro insolitamente circular, hierático, em que até uma criança se arma de terno e gravata, preparando-se, desde cedo, para o mundo da produção paterna.

É quando Hulot, desajeitadamente, molha seus sapatos na casa dos Arpel que o caos moderno ameaça se instalar, provocando certo desarranjo nas coisas, um pouco como o Peter Sellers do clássico “O Convidado bem trapalhão”. Nesse instante, a rachadura antes vista somente na rua comparece na imagem da casa impecável, trazendo a possibilidade de um encontro real, ainda que fortuito, entre os dois mundos: o de Hulot e os do Arpel.

Ao passo que, no ambiente de trabalho, em meio a ruídos que travam a comunicação, o protagonista faz com que plásticos produzidos de forma intensivamente padronizada ganhem involuntariamente um tipo específico de deformação a que alguém denominará “doces”. Tati acolhe o mundo da gratuidade, da brincadeira, de uma maneira em que pareça prever certos problemas do dito mundo moderno, condenado a suas vidraças e camadas de plástico.

Apesar das distinções, Charlie Chaplin conseguia nos lançar em ambiente já nascido caduco em seu interior (“Tempos Modernos”). No universo deslumbrante e deslumbrado dos Arpel, a câmera mal respira com as coisas e os personagens, enquanto os cômodos da casa não se interligam.

Entre a alienação adulta e a dita “ingênua”, o diretor aposta na segunda, onde certo lirismo se faz possível. O que não se configura exatamente como simples nostalgia. Seu filme, ao evocar um mundo moderno que então nascia não deixará de traduzi-lo em um tipo de ficção, que guardará relações certas com o filme de horror. Seja por conta dos ruídos circulares, infernais, seja pela caricatura de uma burguesia que flerta todo o tempo com o caricatural, ou seja, com o grotesco.

Pode-se rir à vontade, mas algo certamente ficará retido na garganta, uma vez que a obra adquire uma austeridade de observação, em algo semelhante a de um Michelangelo Antonioni, cineasta italiano. O mesmo a filmar um universo cravado em eixo aprisionante, em que, à força de um tipo de lucidez do olhar, maior se fazia a possibilidade de desconstrução de um mundo, com seus signos e valores.

No entanto, em Hulot, a poesia pode até comparecer como minguada a olhos desatentos. Contudo, a imagem final – de um branco lençol levemente se estendendo e distendendo de uma janela - resumirá bastante do estado de espírito desse belíssimo “Meu Tio”.

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